Descansar é a chave para abandonarmos o título de “sociedade do cansaço”. Mas alguém sabe o que é desacelerar?
Cansados, fadigados, exaustos, esgotados, extenuados, moídos, exauridos, estafados, alquebrados, esfolados, puídos, escangalhados, entregues, na capa da gaita, no pó da rabiola, de língua de fora. É provável que essa sequência cansativa de adjetivos descreva o seu estado de espírito ou dos seus amigos, ou de membros da sua família, ou de uma dezena de pessoas que está ao seu redor, ou até mesmo de todos esses grupos simultaneamente – afinal, quando foi a última vez que relaxamos? A gente não deveria estar fazendo algo útil? Não nos mandaram trabalhar enquanto os outros dormiam?
“Uma estranha loucura dominou as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura traz como consequência misérias individuais e sociais que há séculos torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda que absorve as forças vitais do indivíduo e de sua prole até o esgotamento”, diz o início do manifesto “Direito à preguiça”, do franco-cubano Paul Lafargue publicado em 1880. Na época, as jornadas de trabalho ultrapassavam as doze horas diárias; estávamos longe da asseguração de direitos trabalhistas e mais distantes ainda de comprovar as vantagens da semana de quatro dias, mas o genro de Karl Marx já dava indícios de que elas existiam.
Uma vida resumida em acordar para riscar tarefas em uma lista interminável e dormir para, ao acordar, conseguir cumprir outra jornada de compromissos que se reproduzem ad infinitum. A expressão francesa “métro – boulot – dodo” (metrô-trampo-dormir, em tradução livre) apareceu pela primeira vez no poema “As cores da fábrica”, de Pierre Béarn, em 1951, e resistiu ao tempo não só pela musicalidade do trinômio, mas por sua precisão em sintetizar a vida do trabalhador contemporâneo que, onde quer que esteja e o que quer que faça, não tem tempo pra nada.
Mesmo antes de a pandemia e o trabalho remoto quebrarem as barreiras entre o lar e o escritório, já vivíamos na “sociedade do cansaço”, como cunhou o sul-coreano Byung-Chul Han em seu livro homônimo publicado em 2010. O filósofo argumenta que, até pouco tempo atrás, as sociedades eram guiadas pela imposição de disciplina e regras restritivas, hoje a era do cansaço opera por meio do excesso de estímulos e do sistema de autoexploração.
Essa lógica nos compele a estarmos disponíveis, a sermos produtivos e performarmos nossa melhor versão constantemente – seja lá o que isso signifique e o quanto essa abstração custe. Pressionados e expostos a todo momento a uma multiplicidade de possibilidades e informações, em grande parte devido ao avanço da tecnologia e das redes sociais, estamos marcados pela sobrecarga de demandas incessantes e pelo sentimento de esgotamento.
É notório que viver nessa dancinha neoliberal 24/7 traz severas consequências para a saúde física e mental. Para além do burnout, que parece atingir mais de 30% da população economicamente ativa no Brasil (o país ocupa o segundo lugar em casos da síndrome, atrás apenas do Japão), o cansaço extremo está atrelado à piora na qualidade do sono, ao sedentarismo, ao risco aumentado de desenvolvimento de depressão, ansiedade, doenças cardiovasculares, doenças neurodegenerativas, comportamentos de risco, e a incontáveis prejuízos sociais.
No prefácio do livro “Não aguento não aguentar mais”, da jornalista americana Anne Helen Petersen, publicado por aqui pela editora Harper Collins, a roteirista Renata Corrêa narra sua própria experiência com a síndrome de burnout, que se conecta diretamente à teoria de Byung-Chul Han. “Muito do nosso cansaço e da sensação de que vivemos no limite também pode ser atribuída à ausência de separação entre o que somos e o que fazemos. Se nossos pais tinham vidas onde, para além do trabalho, suas relações de afeto, militância política, lazer e hobbies eram constituintes da sua identidade, agora os Millennials são pressionados a unir tudo isso em uma persona pública infalível que muitas vezes determina sua sorte ou sucesso na vida profissional e afetiva. Dificilmente paramos de trabalhar, pois quando não estamos efetivamente trabalhando em nossos empregos oficiais (quando existem), estamos construindo meticulosamente o avatar online que será crucial para o próximo emprego ou para o próximo relacionamento amoroso”.
Renata completa citando o privilégio, uma questão essencial entendermos o cansaço na realidade brasileira:
“O avanço tecnológico que iria nos libertar de cargas de trabalho exaustivas se tornou, na verdade, uma única e longa jornada que jamais se encerra, o que é particularmente esmagador para pessoas negras e mulheres.”
Felizmente, há cada vez mais gente repensando os valores da cultura da produtividade autoinfligida e buscando estabelecer relações de trabalho, bem-estar individual e coletivo mais equilibradas – e o ócio é a chave para sair dessa prisão. Mas como parar e olhar para nós mesmos se só somos ensinados a acelerar?
Um primeiro passo talvez seja aceitar que o descanso é fundamental e que precisa ter lugar na agenda. A doutoranda e professora de gestão de tempo Ana Maria Ribeiro, ressalta o papel do relaxamento como ferramenta criativa, de formação de memórias, de aprendizado, de regulação emocional e até como combustível para a própria produtividade. Para ela, o cansaço exacerbado é resultado de um fenômeno multifatorial que extrapola o âmbito profissional: “O trabalho representa uma parte importante nesse quadro, mas precisamos olhar também para o excesso de estímulos, para questões comportamentais e para a nossa relação com a tecnologia. Vivemos na sociedade do desempenho, onde teoricamente tudo parece ser possível. Temos sempre a sensação de estarmos perdendo tempo, porque alguém está sempre na nossa frente, mesmo que na maioria das vezes seja uma ilusão”.
Nada de mil abas abertas. Ana alerta sobre a necessidade do tédio para o descanso revigorante, a falácia da produtividade “multitasking” e sobre como o uso excessivo de telas pode nos deixar ainda mais sobrecarregados por desregular a liberação de dopamina, neurotransmissor responsável, entre outras funções, pela motivação. No entanto, uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) feita com dados do Ministério da Saúde mostra que estamos indo no caminho oposto: entre 2016 e 2021 os brasileiros aumentaram o tempo diário de tela (celular, computador e tablet) gasto por prazer de 1,7h para 2h e a proporção de pessoas que passam 3h ou mais nesses dispositivos como forma de lazer subiu de 19% para 25% no período.
Outra concepção que precisa ser abandonada é a culpa. Anne Helen Petersen, destaca essa face perversa e bastante frequente da busca pelo sossego. “As horas em que não estamos tecnicamente trabalhando nunca parecem livres de otimização — seja do corpo, da mente ou de seu status social. A palavra ‘lazer’ vem do latim licere, traduzida como ‘estar permitido’ ou ‘ser livre’. Lazer, então, é o tempo de você fazer o que quiser, livre da culpa em relação à geração de valor. Mas, quando todas as horas podem ser em teoria convertidas em mais trabalho, as horas em que você não está trabalhando parecem uma oportunidade perdida, ou apenas um fracasso abjeto.”
Meditação, cerâmica, caminhada, crochê, quebra-cabeça, observação de pássaros, colorir mandalas… Ribeiro e Petersen concordam que, independentemente do que você decidir fazer para desacelerar no seu tempo livre, hobbies só serão hobbies enquanto mantiverem a premissa de atividades despretensiosas, movidas pelo prazer e pelo ócio e não pelo desejo de monetizá-los. Para descansar, a única ambição válida é a contemplação – nada melhor, mais difícil e urgente do que não fazer nada.
O que queremos? Sossego! Então, confira nossa entrevista completa com estratégias práticas.
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