IDENTIDADE

Os homens que não admiravam as mulheres (que eles não querem pegar)

Deixando de lado a atração sexual e os laços familiares, que mulheres você admira?

 

Nas últimas semanas, um estilo de entrevista muito específico viralizou no Tiktok: primeiro, uma repórter pede que vários homens citem um homem que eles admiram e porquê. Respostas eloquentes fluem imediatamente, exaltando figuras diversas: políticos, jogadores de futebol, cantores… Em seguida, a repórter pede para que os mesmos entrevistados citem uma mulher que admiram. Depois de um breve silêncio, todos respondem citando familiares (mães e irmãs) ou mulheres com quem se relacionam (namoradas, esposas). 

 

Na temporada mais recente do Masterchef Brasil, algo semelhante aconteceu. O chef Alex Atala participou de um episódio e, ao exaltar os jurados fixos do programa, cobriu os dois chefs homens de elogios elaborados aos seus talentos – e, ao falar de Helena Rizzo, citou apenas sua beleza, dizendo que quem a via na cozinha dizia que ela “parecia uma modelo”. A chef até chegou a se pronunciar em seu instagram quando o episódio foi ao ar, e a fala de Atala repercutiu tão mal que ele se retratou publicamente. 

 

Lado a lado, esses dois casos evidenciam uma forma específica de enxergar a mulher –  o famoso “male gaze”, ou, “olhar masculino”. A partir dele, a mulher não é vista um semelhante, muito menos como alguém que pode servir de exemplo – ela é objetificada. Essa objetificação na maioria das vezes toma forma de sexualização, ou seja, de ver a mulher apenas por seu corpo ou beleza física. No caso das familiares, em que o desejo sexual é proibido (alô, psicanálise), o afeto pode ser genuíno, mas muitas vezes passa pelo aspecto funcional, ou seja, “o que essa mulher fez ou faz por mim”. 

 

No Brasil, o mais recente estopim dessa discussão se deu a partir do tema da redação do ENEM deste ano: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” – segundo dados de 2022 do IBGE, mulheres ocupam 9 horas a mais do que os homens em afazeres domésticos ou cuidado de pessoas toda semana. A reação inflamada de homens, em especial os de círculos intelectuais, em relação ao tema escolhido já é um sintoma do quanto esse tipo de trabalho é, como o próprio tema infere, invisível. E mesmo se esse sacrifício fosse exaltado, nenhum elogio seria melhor do que se os homens se dispusessem a dividir esse trabalho de forma igualitária. 

 

E afinal: se removermos o desejo sexual e a “ajuda no lar” das familiares, que interesse os homens têm nas mulheres – e no que elas dizem, fazem, pensam e criam? Muitos sequer enxergam a possibilidade de olhar com admiração para uma mulher e pensar “quero ser como ela”, em vez de “quero ela pra mim”. Claro que existem exceções – principalmente quando não são homens héteros (as divas pop que o digam). Então, fica claro que não existe nenhum tipo de incapacidade ancestral ou biológica que impeça o homem de admirar a mulher: é uma questão puramente cultural, feita sob medida pelo patriarcado e assimilada por grande parte dos homens.

 

Você não sabe que é tóxico?

 

Reparem que nem estamos entrando no assunto dos adeptos da masculinidade tóxica (red pills, incels, maculinistas, entre outros), que literalmente veem a mulher como inferior e “medem” seu valor a partir de critérios como idade, aparência física e número de parceiros que ela já teve. Mas, mesmo que em diferentes medidas, a lógica é a mesma: o importante na mulher não é sua essência como pessoa, e sim o que ela tem a oferecer – desde sexo até casa, comida e roupa lavada. Ela nunca é o sujeito da ação, somente o objeto. 

 

Essa perspectiva distorcida da mulher é reforçada de tantas formas na nossa cultura que acaba sendo um processo automático – e, infelizmente, replicado até por outras mulheres, que compram o discurso de que existem mulheres “inferiores” e que merecem seu desprezo. Um bom exemplo desse julgamento desmedido é a icônica Britney Spears, cuja foi marcada pela misoginia da mídia e do público. Não dá para negar que, mesmo sendo desejada e exaltada por sua beleza desde adolescente, ela não escapou de críticas pesadas, especialmente após se tornar mãe. 

 

Mas, há poucas semanas, Britney deu um passo corajoso: lançou sua autobiografia, em que conta detalhes desses anos todos de carreira, da tutela abusiva de seu pai e até mesmo o real motivo do término com Timberlake: um aborto que ele a pressionou a fazer. O importante é que, agora, Britney está cada dia mais se tornando sujeito da sua própria história – e, pela primeira vez em décadas, pode controlar sua narrativa como bem entende. 

 

Mas peraí, nem todo homem–

 

Sim, ainda bem: nem todo homem tem essa dificuldade. Há aqueles que conseguem admirar a mulher para além do físico e do “funcional”, e enxergam homens, mulheres e outras identidades de gênero como iguais, independentemente de por quem se sintam atraídos. Grandes são as chances de que homens assim tenham sido criados em lares mais igualitários em termos de papéis de gênero, o que faz com que a criança cresça com menos distinções do tipo “isso é coisa de mulher”.

 

Muito se fala da importância de as mulheres conquistarem novos espaços, especialmente os que são considerados “masculinos”, mas o inverso também é importante: homens não devem ser diminuídos quando se interessam por temas e assuntos considerados “femininos”. Essa rejeição imediata a tudo que remete ao feminino e à mulher é a raiz de comportamentos misóginos e destrutivos, que fazem mal inclusive para o homem que os pratica.

 

No fim das contas, é tudo uma mudança de perspectiva – que, apesar de abstrata, tem efeitos profundos no jeito que nos relacionamos e expressamos em sociedade. Pode não parecer fácil, especialmente se o meio ao redor de você é majoritariamente masculino, mas fica o convite aos homens para olharem para as mulheres de outra forma. Sem sexualizar, santificar ou julgar – apenas deixando-as existir. Quem sabe assim você não passe a admirá-las?

 

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Victor Marcello

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