Não é conveniente para as empresas que nossos sentimentos negativos no trabalho venham de uma “síndrome” da nossa cabeça?
Qualquer pessoa com conexão à internet e um pingo de insegurança já se deparou com esse termo nas redes sociais: “síndrome da impostora”. São vários os vídeos, podcasts e livros que destrincham esse fenômeno, que consiste no sentimento de que você não merece as conquistas profissionais que surgem ao longo da sua carreira – e, na verdade, você não é boa o suficiente no que faz e morre de medo de ser desmascarada a qualquer momento. Se soou familiar, você não está sozinha: diversos estudos apontam que 70% das pessoas já se sentiram assim – e entre as mulheres, essa porcentagem pode chegar a 82%.
Mas antes de sair deste artigo com esse auto-diagnóstico capenga pra ir atrás de dicas para “curar” essa síndrome – que variam de afirmações para se fazer no espelho a desenhos do seu “eu-impostor” como um monstro -, vamos dar um passo para trás e entender a história desse termo. Antes de tudo: a síndrome da impostora não é uma síndrome. O estudo original, publicado em 1978 pelas psicólogas Pauline Rose Clance e Suzanne Imes, utiliza o termo “fenômeno da impostora” – logo, é algo que acontece, uma experiência, e não uma doença, uma condição a ser tratada.
Por mais que seja interessante e muitas vezes benéfico investir no seu autoconhecimento como pessoa, é importante não cair na armadilha de que, se seu ambiente de trabalho te faz mal, você deveria agir de maneira x ou se “empoderar” usando o método y. Esses conteúdos de “autoajuda corporativa” são traiçoeiros, porque colocam na pessoa a responsabilidade de mudar. Assim, o que era inicialmente o estudo de uma frustração compartilhada de mulheres bem-sucedidas se tornou uma ferramenta de distração que é super conveniente para grandes empresas. Afinal, se você seguir focada em superar sua “síndrome”, não vai voltar sua atenção para quem define os moldes do mercado de trabalho – que, na verdade, são a raiz do problema.
No seu discurso para os formandos da Smith College em maio deste ano, a advogada e política Reshma Saujani fez um paralelo entre a síndrome da impostora e uma doença descoberta em meados de 1890: a cara de bicicleta. Era um mal que atingia somente mulheres – que, ao andarem de bicicleta, apresentavam sintomas como bochechas avermelhadas, olhos arregalados e uma expressão irritada.
Não por acaso, a “cara de bicicleta” surgiu na mesma época do movimento das sufragistas, que lutavam pelo direito das mulheres ao voto. Em 1897, a primeira mulher a fazer parte da Associação Médica Americana, a Dr. Sarah Hackett Stevenson, refutou a tal cara de bicicleta como condição médica – era apenas uma tentativa de impedir a liberdade feminina com uma doença fictícia. Esse tipo de estratégia não é novidade: o conceito de histeria, criado no século XIX, foi usado para controlar e “domesticar” mulheres que se recusaram a viver de acordo com os padrões da época.
O fenômeno da impostora, por outro lado, foi publicado em 1978 de forma bem intencionada por duas mulheres – mas o contexto político também é importante nesse caso: anos antes, entre 1972 e 1978, o governo americano aprovou uma série de leis e emendas a favor dos direitos das mulheres. Ou seja: no contexto em que o fenômeno da impostora foi identificado, as mulheres estavam de fato passando a ocupar espaços profissionais que eram dominados por homens – logo, não é de se admirar que elas não se sentissem “dignas” desses cargos.
Mesmo com sua origem diretamente ligada ao feminismo, o fenômeno do impostor também pode acontecer com homens – como as autoras do estudo enfatizaram anos mais tarde, se trata de uma experiência humana. Membros de outras minorias, como pessoas pretas e LGBTQIA+, também podem sofrer dessa sensação de não-pertencimento, principalmente quando não encontram pessoas iguais a elas em posições de poder nas áreas que atuam. Mas, mais uma vez, o problema não deve ser internalizado: não é o indivíduo que precisa se tratar, é toda uma cultura de trabalho que precisa ser revista.
Nesse sentido, a síndrome da impostora é um prato cheio para o capitalismo: se os funcionários não se julgarem dignos de seus cargos, vão trabalhar cada vez mais para tentar preencher uma lacuna que, na prática, não existe. Em seu livro “Não aguento mais não aguentar mais”, a escritora Anne Helen Petersen explica que os millennials são a primeira geração que passou a se compreender, “conscientemente ou não, como ‘capital humano’: sujeitos a serem otimizados para melhor performance na economia”, o que muitas vezes culmina em casos de burnout.
Tanto a síndrome da impostora quanto o burnout são percebidos como falhas internas – de um lado, uma falta de confiança na própria capacidade, do outro, uma falta de habilidade em equilibrar trabalho e vida pessoal -, mas ambos nascem de ambientes de trabalho tóxicos. Segundo artigo da Arctic Shores, “o ambiente de trabalho tem um forte impacto em como percebemos nossas capacidades. Processos seletivos, planos de carreira e políticas de RH falhos contribuem para uma autocrítica incorreta”. Claro que é importante avaliar o próprio desempenho de forma sincera e construtiva – mas, se seu primeiro instinto é sempre questionar sua competência em vez de analisar as dinâmicas de trabalho que despertam essa sensação de impostora, vale desdobrar a atenção.
Muitas vezes, o problema está do lado de fora, na forma de microagressões, atitudes enviesadas e até assédio moral. Por isso, faz sentido olhar para dentro – mas não para localizar as falhas e, sim, para encontrar a própria força. Bater de frente e propor mudanças em sistemas tão estabelecidos pode parecer intimidador – mas, a cada conquista, você relembra aqueles que são como você de que é possível, sim, ocupar esse espaço e muitos outros. São eles que precisam de cura.
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