FUTURO

O que pode nos cancelar no futuro?

Você já sentiu um medinho do famoso cancelamento? A palavra se tornou um termo carregado, usado como arma retórica em discussões políticas e pânicos morais. E há quem diga que o cancelamento nem existe de verdade. Mas é indiscutível que se tornar o alvo do desprestígio coletivo – e dos boicotes e ameaças que muitas vezes andam juntos – é uma experiência traumática. 

A ansiedade por não se tornar a próxima hashtag leva muita gente a ter um cuidado redobrado com tudo o que publica nas redes sociais. Mas muita coisa que soava inocente há menos de uma década hoje pode pegar extremamente mal. E é ingênuo quem pensa que um comentário do passado não poderá ressurgir no futuro. Então, seria possível prevenir um cancelamento futuro? 

Como um exercício despretensioso, a PlayGround Brasil perguntou aos nossos seguidores no Facebook quais práticas vigentes teriam o maior potencial de cancelamento no futuro. Foram dezenas de compartilhamentos e mais de 2,3 mil comentários, e nos divertimos muito avaliando a futurologia dos nossos seguidores. A discussão acabou se desdobrando para uma reflexão importante sobre minorias e exposição online.

Muitos pediram para “cancelar o cancelamento”, ou citaram pânicos morais descabidos, como a implausível proibição da heterossexualidade, por exemplo. Esses não entraram na lista final. Demos preferência a assuntos que já são questionados hoje, apesar de ainda aceitos, e cujo desprestígio apontaria para uma sociedade mais igualitária e justa. Pelo menos na nossa opinião! Confira algumas das principais especulações:


Comer carne

A exploração de animais em geral tem se tornado um assunto cada vez mais relevante. O número de vegetarianos e veganos no mundo tem crescido rapidamente, endossado por celebridades como Natalie Portman e Ariana Grande. Além da preocupação com os bichinhos, a preferência por abandonar a carne também significa um ganho para o planeta, já que o agronegócio é um dos maiores vilões do aquecimento global.


O uso de plástico

Já existe um movimento global que trabalha para diminuir o uso de plásticos descartáveis de uso único. Campanhas sobre responsabilidades individuais são amigáveis para grandes empresas, que conseguem vender uma imagem positiva de preocupação com o meio ambiente, enquanto fazem lobby para fugir de regulamentações governamentais. Apesar do plástico ser um grande problema para o planeta, ainda é um material fundamental, especialmente para a sobrevivência de populações mais pobres. À medida que soluções ecológicas se tornarem mais acessíveis, usar sacolas plásticas no supermercado vai começar a pegar muito mal.


Chá revelação

A maneira como enxergamos gênero e sexo tem mudado. Transgeneridade e não-binariedade são pautas importantes que vêm crescendo em todo o mundo, e classificar bebês recém-nascidos entre dois gêneros, masculino ou feminino, de acordo com sua genitália, já é um hábito que começa a ser questionado. Junte isso ao número de chás revelação que se tornaram memes, ou pior, desastres, e temos um grande potencial de cancelamento. Seja por princípios ou por vergonha alheia mesmo.


Exposição de crianças na internet

A exposição de crianças na internet pode gerar consequências desastrosas. Se tornar um meme pode arruinar a vida de alguém, e não há como prever o que vai viralizar fora de contexto. Como as crianças não conseguem entender esse risco, muita gente já questiona o ato de compartilhar imagens de menores de idade online. Mesmo que pareça inocente, publicar nas redes aquele vídeo engraçado do seu filho ou sobrinho pode tornar você um vilão no futuro.


Carro particular

Os meios de transporte individuais ainda são parte fundamental da cultura de muitos países. Mesmo carros elétricos, que têm um menor impacto poluente, ainda contribuem com engarrafamentos nas grandes cidades e com um ambiente inóspito para pedestres. Alguns dos nossos seguidores chutaram que comprar um carro no futuro pode ser visto com péssimos olhos. Já temos opções de transportes compartilhados e apps de carona, mas, até chegarmos a um futuro sem automóveis particulares, precisaremos de uma evolução na estrutura de transporte público no mundo todo.


Progresso não é linear

Para o historiador Gustavo Gaiofato, conhecido nas redes pelo perfil @HistoriaCabeluda e pelo podcast Mesa da Vida (em parceria com a crítica de cultura Rita von Hunty e o psicanalista Henrique Vicentini), novos cancelamentos estão por vir porque, na perspectiva histórica, nada se estabelece de vez. Os jogos de poderes e tensões que moldam os valores de cada época não param de se rearranjar. “É falsa a impressão de que a história chegou a seu limite.” Se muda o contexto político-cultural, muda também a percepção do que é aceitável. E isso vai continuar acontecendo – o historiador só prefere não prever em qual direção.

 

É a mesma cautela manifestada pela jornalista e cientista política Fhoutine Marie (@DraFufu no Twitter). “Hoje, a escravidão é considerada abominável, mas não faltam casos de pessoas mantidas em condições análogas. Do mesmo modo, se uma parcela da sociedade questiona o chá revelação, por entendê-lo como uma imposição de identidade de gênero, ainda temos uma indústria que lucra com esse binarismo e setores conservadores que se mobilizam contra a simples discussão do tema”, exemplifica. Não é possível prever como esses embates vão se desdobrar.

 

E não é apenas a diversidade de gênero que incomoda os mais conservadores. Todos os ítens da nossa lista indicam mudanças culturais que ameaçam indústrias extremamente lucrativas. Vivemos em um sistema que ativamente trabalha para frear uma mudança cultural nessas áreas, e o retrocesso que vivemos no mundo todo nos últimos anos corrobora a tese que o progresso não é linear. É preciso brigar para que essas mudanças ocorram, mas é questionável se o “cancelamento” de indivíduos seja a ferramenta certa para isso.


Dois pesos, duas medidas

Os cancelamentos colocam em pauta questões latentes na sociedade, mas não se pode dizer que geram responsabilização. “Há vários exemplos de pessoas que foram expostas por práticas de racismo, violência de gênero, entre outros, e que seguem suas carreiras normalmente, algumas vezes com mais seguidores e melhores cachês”, pondera Fhoutine.  “Talvez seja o caso de olhar sobre quem recai a responsabilização: há apresentadoras loiras reincidentes em declarações racistas que seguem como divas e homens brancos agressores de mulheres se tornaram vencedores de reality shows.”

 

O fenômeno de desprestígio em massa claramente tem consequências muito diferentes para determinados grupos. Em especial as minorias sociais e políticas, que vivem sob vigilância, tanto de pessoas do “outro lado” quanto dos próprios parceiros. O processo de “cancelamento” é complexo e imprevisível. É um alinhamento infortúnio entre comportamento de manada e o azar de falar a coisa errada no momento errado. 

 

Letitia Wright, atriz do filme Pantera Negra (2018), manchou sua reputação ao fazer declarações negacionistas e anti-vacina durante a pandemia. Sua colega da Marvel, a atriz branca Evangeline Lilly, teve um posicionamento muito similar, mas enquanto fãs fazem petição para que a primeira seja demitida e substituída na franquia, a segunda segue pouco contestada. Ambas deram opiniões pavorosas, mas é indiscutível que a mulher negra foi desproporcionalmente atacada.

 

E há mais nuances: se por um lado o cancelamento retira apoio de indivíduos com comportamentos nocivos e dá visibilidade a debates importantes para a sociedade, por outro, críticos apontam que o linchamento virtual cria um punitivismo desproporcional e inescapável para uma grande parcela das pessoas. “A internet favorece um certo comportamento de manada e muitas pessoas, protegidas pelo anonimato, aproveitam para agredir verbalmente e ameaçar”, afirma Fhoutine. Gustavo acrescenta que as forças conservadoras se apropriaram do conceito de “liberdade de expressão” para exercer, na prática, liberdade de opressão. 

 

E você, o que acha? Sentiu falta de algum item? Quer cancelar essa discussão? Compartilhe sua opinião e nos marque nas redes sociais.

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Published by
Victor Marcello
Tags: Cancelamento

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