Concebido numa imersão artística em Niterói, o disco de 1972 reúne misturas e inventividades sonoras que ainda repercutem na cena musical mineira
A miscelânea de repertórios dos envolvidos no Clube da Esquina resultou num álbum que até hoje, 50 anos depois de seu lançamento, permanece único na história da música brasileira. Tudo ali funciona bem. “Tem início, meio e fim, canções relacionadas entre si, uma disposição de faixas não aleatória e canções em íntima sintonia com o projeto gráfico da capa”, afirma Sheyla Castro Diniz, doutora em Sociologia pela Unicamp e autora do livro De Tudo que a Gente Sonhou: Amigos e Canções do Clube da Esquina, da Editora Intermeios.
Essa história que ainda não terminou teve um belo começo. No início dos anos 1970, Milton Nascimento já tinha uma carreira sólida, com quatro álbuns de estúdio muito bem recebidos. Naquela época, “Bituca”, como também era conhecido, colecionava prêmios em festivais de música e canções gravadas por Elis Regina. Boa parte dos amigos que fez em Belo Horizonte se tornaram nomes recorrentes nas fichas técnicas de seus álbuns, explicando a boa sintonia de parcerias que resultaria no Clube da Esquina.
Nessa fase, Milton convidou Lô Borges, ainda prestes a entrar na maioridade, para gravarem um disco juntos. Após pedir autorização dos pais e dispensa do serviço militar, o jovem Lô aceitou a proposta. Outros amigos que também costumavam se encontrar na esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis, em BH, foram agregados ao projeto. É daí que vem o nome Clube da Esquina.
Os amigos costumavam se encontrar na esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis, em BH, foram agregados ao projeto.
É daí que vem o nome Clube da Esquina.
Milton e Lô foram para a famosa casa à beira-mar na praia de Piratininga, em Niterói, na qual compuseram a maior parte das canções, enquanto recebiam os outros instrumentistas e compositores que integraram o projeto. Apesar de uma agradável rotina de criação, alternada por mergulhos e conversas entre amigos, os envolvidos não deixaram de transitar por outros tons e temas – o gosto amargo da ditadura influenciou as letras. A poesia era uma estratégia para despistar a censura e posicionar o álbum também como uma obra de resistência.
“Clube da Esquina é um disco que eu definiria como outono-inverno. Traz as angústias e a beleza bucólica de uma árvore quase sem folhas com uma energia que nos dá sensação de riso e choro ao longo das 21 faixas”, elogia Peu Araújo, jornalista e pesquisador musical. Wagner Tiso, Toninho Horta e Flávio Venturini incorporaram, cada um à sua maneira, bases mais eruditas. Milton, por sua vez, vinha do samba e da bossa nova. E Lô trazia influências pop, inspirado nos Beatles e no rock progressivo da época.
Por conta de limitações técnicas, o material precisou ser gravado em apenas dois canais, o que trouxe uma dinâmica cuja sintonia entre todos era essencial, como se fosse gravado ao vivo. Em março de 1972, o disco foi lançado com uma capa estampada pela imagem icônica de dois garotos clicados pelo fotógrafo Cafi, especializado em capas antológicas. Mas a recepção imediata não foi das melhores.
“Parte da crítica entendia que Milton não era contracultural o suficiente, que ainda nutria certo conservadorismo da ‘MPB nacionalista’ dos anos 1960, que ainda era preso às ‘toadas mineiras’ que fez naquela década, como Travessia e Morro Velho”, contextualiza Sheyla.
Isso mudou quando o grupo de jazz fusion norte-americano Weather Report, em turnê no Brasil na mesma época dos primeiros shows do Clube da Esquina, compareceu a uma das apresentações do grupo mineiro no Rio de Janeiro. A partir desse reconhecimento ilustre, os shows, que a princípio não chegavam a encher, ganharam mais atenção e verba da gravadora, lotando grandes espaços. Com uma sonoridade e uma estética próprias, fruto de uma mistura de influências e especificidades trazida por cada um dos músicos envolvidos, o álbum se firmou como uma alternativa à Tropicália.
Com uma sonoridade e uma estética próprias, fruto de uma mistura de influências e especificidades trazida pelos músicos envolvidos, o álbum se firmou como uma alternativa à Tropicália.
Aos poucos, o reconhecimento chegou. Caetano e Gil, que, naquele mesmo ano de 1972, trouxeram outros discos clássicos na mala de volta do exílio, reiteraram a importância do Clube para a cultura brasileira. “Eles traziam o que só Minas pode trazer: frutos de um paciente amadurecimento de impulsos culturais do povo brasileiro, o esboço (ainda que muito bem-acabado) de uma síntese possível”, relata Caetano no prefácio do livro Os Sonhos Não Envelhecem: Histórias do Clube da Esquina (Geração Editorial), escrito por Márcio Borges.
Para além do prestígio nacional, o disco é reconhecido até hoje. Recentemente, Kanye West e Pharrel foram flagrados curtindo alegremente a versão de Tudo que Você Podia Ser, performada pelo Quarteto em Cy, tocada num desfile de moda. Sempre presente em listas de melhores discos brasileiros, como a realizada pela Revista Rolling Stone em 2007, o Clube da Esquina abre caminhos para uma identidade mineira que se renova até hoje.
Citando por cima, sucessos contemporâneos como FBC e Marina Sena bebem dessa fonte, assim como o rapper Djonga, hoje um dos maiores responsáveis pelo atual reconhecimento do rap mineiro. Em 2017, Heresia, seu disco de estréia, trouxe na capa uma releitura da foto dos dois meninos, numa referência explícita ao Clube da Esquina. Na época desse lançamento do disco, em entrevista ao jornal O Tempo, o rapper disse que se tratava, numa tacada só, de uma homenagem e uma heresia. A ousadia era também uma influência, um exemplo de uma arte destemida, feita por músicos brasileiros corajosos e criativos que fazem questão de dobrar uma certa esquina até hoje.
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