IMPACTO SOCIAL

Os perigos de transformar crianças em conteúdo na internet

Nenhuma criança foi maltratada na produção deste artigo – mas será que o mesmo pode ser dito sobre o último vídeo que você assistiu?

Que a internet não tem limites, todo mundo que tem rede social sabe – mas o tribunal virtual que habita nos comentários do Instagram deu seu golpe mais baixo recentemente, quando encheu a pequena Lua, filha dos ex-BBBs Vihtube e Eliéser de apenas seis meses, de críticas e xingamentos em relação ao seu peso. Isso mesmo que você leu: uma criança que sequer sabe andar já está sofrendo gordofobia virtual.

 

Para além da maldade no coração de alguém que faz comentários como esse na foto de um bebê, é inevitável pensar no efeito que esse cyberbullying antecipado pode ter na jovem Lua quando ela tiver idade para entender o que significa ter um perfil na internet – o dela, nesse momento, já contabiliza mais de 2 milhões de seguidores e uma série de registros dos seus mêsversários temáticos e ensaios fotográficos com os pais.

 

Esse hábito de postar fotos e vídeos dos filhos na internet tem até nome: o termo sharenting, uma mistura das palavras “share” (compartilhar) e “parenting” (parentalidade). Em sua essência, o sharenting é um hábito comum de uma geração acostumada a compartilhar detalhes da própria vida na internet, e na maioria das vezes é feito de forma bem-intencionada, para se ter um registro da infância dos filhos e compartilhá-lo com entes queridos. O problema é quando essas fotos e vídeos viram conteúdo e viralizam – tornando-se uma possibilidade de ganho financeiro e visibilidade para os pais.

 

Para a maioria dos influenciadores, expor o dia a dia com o filho é um passo natural – afinal, desde mais jovens, eles estão acostumados a abrir mão de sua privacidade, tornando suas amizades, parceiros e familiares parte do seu conteúdo. Muitos dizem que só filmam os filhos quando eles permitem, mas será que uma criança realmente entende a dimensão desse consentimento, e que aquele momento específico será compartilhado com milhares de desconhecidos – e ficará disponível para sempre para que qualquer um use como bem entender? 

 

(Crédito: Unsplash)

 

Ela tem os olhos do papai… e o engajamento da mamãe

 

A influenciadora Sarah Adams usa seu perfil no Tiktok para alertar pais dos perigos de expor os filhos na internet. Em entrevista ao podcast “What The Actual Fork?”, ela explica que a exposição dos filhos de influenciadores é ainda pior do que aquela que atores e atrizes mirins sofrem, porque atuar num filme ou programa de TV gera um distanciamento seguro para a identidade da criança. Filhos de influenciadores, por outro lado, têm sua privacidade roubada nos seus primeiros anos de desenvolvimento, e muitas vezes são forçados a “performar” em sua própria rotina, dentro de suas casas. “A existência dessas crianças está sendo explorada, suas infâncias estão sendo comercializadas, sua humanidade está sendo monetizada”, alerta Sarah.

 

Conforme o conteúdo protagonizado pela criança faz sucesso, também aumenta a pressão dos pais para que a criança continue performando e gerando ganho financeiro para toda a família. E, assim como na batalha judicial entre Larissa Manoela e seus pais, muitas vezes a criança é quem garante o sustento familiar, mas não tem garantia em relação aos seus lucros – uma vez que a lei pressupõe que os pais vão administrar esses recursos de acordo com o que seria o melhor para a criança. 

 

Nesse sentido, a França foi pioneira. Em outubro de 2020, o país estabeleceu uma lei para regulamentar a atuação de crianças como influenciadoras – com isso, elas seriam protegidas com as mesmas regras e direitos de crianças que trabalham na mídia tradicional. Nos Estados Unidos, o estado de Illinois aprovou este ano uma lei semelhante, que protege crianças influenciadoras e lhes garante uma porcentagem dos seus ganhos, calculada dependendo do quanto a criança está presente no conteúdo em questão. Aqui no Brasil, um projeto de lei criado no ano passado estabelece regras para a atuação de influenciadores mirins, mas ainda está em tramitação na Câmara dos Deputados. 

 

Ainda assim, a compensação financeira é só um dos problemas: além de não ter dinheiro para comprar um milho ou um mate, essas crianças têm sua infância exibida nos mínimos detalhes a uma audiência de estranhos que passam a saber tudo sobre elas. Além do risco mais óbvio de atrair predadores – ainda mais em tempos de inteligência artificial, em que a imagem de qualquer pessoa pode ser manipulada de formas perversas -, essa linda criança instagramável vai crescer um dia. Será que ela vai se sentir confortável sabendo que colegas de escola, faculdade ou mesmo de trabalho têm acesso a momentos de sua intimidade – incluindo muitas vezes momentos constrangedores? Mesmo que os pais depois decidam fechar o perfil ou mesmo deletar esses posts, pode ser tarde demais. 

 

(Crédito: Unsplash)

 

Quantos likes essa princesinha merece?

 

E antes mesmo de qualquer arrependimento futuro, os efeitos gerados na criança ao longo de toda essa “produção de conteúdo” podem ser cruéis. Muitas crianças, em especial meninas, passam por um processo de adultização precoce. Essa adultização pode ocorrer de diversas formas – desde a maneira como os pais vestem a criança (alguns chegando ao cúmulo de sexualizar a própria filha a troco de likes) até o tipo de conteúdo que elas são ensinadas a reproduzir (por exemplo, falas sobre dieta ou relacionamentos), como se fossem mini adultas. Outras crianças são expostas chorando, em momentos de “birra” ou mesmo sofrendo algum castigo por seu mau comportamento. 

 

Em tempo: a intenção aqui não é crucificar todo e qualquer influenciador que faça conteúdo com a participação dos filhos – muitas vezes, não há qualquer intenção de lucrar em cima da criança ou passar dos seus limites. No fim, tudo é uma questão de discernimento: muitas influenciadoras americanas mudaram a forma como seus filhos participam de seus vídeos – algumas escondem os rostos das crianças com máscaras ou emojis, usam apelidos para não revelar seus nomes ou só deixam suas vozes nos vídeos. Uma boa medida para checar se a imagem da criança está sendo explorada, segundo Sarah Adams, é pensar: essa pessoa tem outros conteúdos para postar sem expor a criança? Se não, é um mau sinal. 

 

Aos meros mortais que praticam o sharenting apenas em seus perfis pessoais, valem algumas recomendações: deixar o perfil privado, remover seguidores desconhecidos, evitar postar fotos em que a criança não está totalmente vestida ou que revelam informações sobre ela – como o uniforme da escola -, são alguns dos pontos principais. Mas não precisa entrar em paranóia, ou num espiral de culpa por uma foto que já foi postada. Esse é um problema novo e delicado – e a grande verdade é que as plataformas digitais deveriam ser mais seguras para crianças, e não deveria ser obrigação dos usuários garantir essa proteção de sua privacidade.

 

Para quem sequer tem filhos e leu esse artigo apenas por curiosidade, vale a reflexão: o quanto você, como usuário de rede social, tem incentivado a produção desse tipo de conteúdo com seus likes, compartilhamentos e perfis que escolhe seguir? Espero que, ao se deparar com um meme ou vídeo com uma criança chorando ou numa situação vergonhosa, você se lembre deste artigo. A mensagem é clara: denunciar postagens abusivas e clicar em “não tenho interesse nessa postagem” nos conteúdos menos pesados, mas que expõem crianças além do necessário. Um pré-adolescente de um futuro não tão distante vai te agradecer por isso!

 

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Victor Marcello

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