Ainda que Pabllo Vittar e Gloria Groove abram o caminho, são muitos os desafios para que a cultura drag brasileira se estabeleça fora do nicho
O ano é 2023 e é impossível falar do cenário musical brasileiro sem citar os nomes de Pabllo Vittar e Gloria Groove. Enquanto o show (com banda) de Pabllo foi considerado pelo Estadão o melhor show nacional no The Town, o mais novo festival paulista, Gloria também foi aclamada pelo seu novo formato de show no mesmo evento, as Noites de Gloria.
Ambas já estouraram a bolha reservada a artistas de nicho faz tempo, conquistando um público cada vez mais abrangente à medida em que exploram diferentes gêneros musicais brasileiros: em 2021, por exemplo, Pabllo lançou o álbum Batidão Tropical, regravando grande sucessos do eletrobrega do Norte e Nordeste brasileiro. Já Glória expandiu seu público com parcerias estratégicas, como sua participação no projeto Lud Sessions da cantora Ludmilla, também em 2021, e os recentes feats com o cantor sertanejo Daniel.
Para além da música, as drag queens estão cada vez mais presentes no mainstream – não mais como seres exóticos (na linha “Quem são? Do que se alimentam?”), mas como representantes da diversidade artística e de conteúdo no Brasil. Só nos últimos anos, vários realities abordando a cultura drag foram lançados por aqui, como Drag Me As A Queen (E!), lá em 2017, Nasce uma Rainha (Netflix) em 2020 e Queen Stars Brasil (HBOmax) em 2022. Esse ano, tivemos a estreia de Caravana das Drags (Prime Vídeo) e finalmente uma versão nacional do icônico RuPaul’s Drag Race: o Drag Race Brasil (Paramount), lançado esse mês.
Se essas produções estão saindo quase anualmente por aqui, é sinal de que existe demanda. Em paralelo a projetos como esses, focados no público LGBTQIAPN+, é interessante ver como as drags estão indo além, ocupando espaços como programas matinais, podcasts de público majoritariamente masculino (como Podpah e Mano a Mano) e até mesas de debate político. Na maioria das vezes, as conversas não fogem muito das pautas identitárias e de diversidade – mas, ainda assim, essa presença mais costumeira das drags fora do nicho tem ajudado a educar o grande público. Se antigamente era comum ver drags apenas dublando músicas em batalhas de lip sync, nomes estabelecidos na cena como Silvetty Montilla, Lorelay Fox e Rita von Hunty usam sua voz para trazer à tona seus desafios dentro e fora da comunidade drag.
“Vacilão me quer de trampolim”
Falando em lip sync, não é novidade que programas do mainstream bebem da fonte da cena LGBTQIAPN+ para elaborar (para não dizer “copiar”) suas atrações. Enquanto o RuPaul’s Drag Race trouxe as batalhas de lip sync para a TV em 2009, o programa The Tonight Show with Jimmy Fallon lançou um quadro com celebridades fazendo lip syncs com o apresentador anos depois, em 2013. O quadro fez tanto sucesso que em 2015, um programa spin-off chamado Lip Sync Battle foi criado, e já teve mais de cinco temporadas desde então. Inclusive, em agosto deste ano, o Domingão do Huck trouxe o quadro para o Brasil, batizado aqui de Batalha de Lip Sync.
Em entrevista para o Papelpop em 2017, a própria Rupaul decretou que o drag nunca será mainstream, porque isso seria uma contradição. Segundo ela, “mainstream é sobre se adequar e se conformar com uma identidade e ficar nessa identidade para o resto da vida. Drag é sobre transformação. Os dois estão em conflito”. Sua declaração coincide com o ano em que o Drag Race ganhou sua primeira indicação ao Emmy de Melhor Programa de Competição – desde então, o reality já venceu a categoria quatro vezes. A fama do programa só cresceu, mas a reflexão permanece: até que ponto uma maior aceitação do grande público em relação à cultura drag resulta em ganhos reais para a comunidade?
Aqui no Brasil, é fato que essa popularização da cultura drag resultou em mais oportunidades de trabalho. Em entrevista para o podcast Bee40tona, a transformista Silvetty Montilla comentou sobre o quanto é gratificante que marcas queiram se associar a artistas drag em parcerias diversas – e não apenas em junho, mês do Orgulho LGBTQIAPN+. Mas também é importante analisar que tipos de drag recebem mais atenção – e, portanto, mais convites de trabalho. A cena drag brasileira existia muito antes da estreia de RuPaul’s Drag Race, mas o sucesso estrondoso do programa influenciou toda uma geração de drags por aqui, como uma espécie de “fórmula padrão” para uma arte antes conhecida por romper padrões.
Um bom exemplo disso é o documentário All That Drag, lançado no canal E! no ano passado, que acompanha trajetórias de artistas drag diversas: drag kings, drags burlescas, drag experimentais, entre outras. Ainda que o termo drag tenha se originado como um acrônimo de “dressed as a girl” (do inglês, “vestido como uma mulher”), essa é uma forma de arte que desafia o conceito de gênero, quase como uma “provocação” das convenções que a sociedade entende como femininas ou masculinas. É importante que essa essência da arte drag não se perca numa tentativa de torná-la mais “palatável” ao grande público, porque isso é justamente o contrário do que o drag se propõe a fazer.
“Inimigos cairão ao som desse trovão”
Além disso, independente de quanto progresso seja conquistado em termos de aceitação e representatividade, é preciso estar atento e forte: investidas reacionárias podem sempre ressurgir para tomar direitos conquistados. Em março deste ano, por exemplo, membros do partido republicano dos Estados Unidos tentaram aprovar uma lei que proibisse shows de drag em locais públicos no Estado do Tennessee. Felizmente, a lei foi julgada inconstitucional meses depois, em junho, mas uma ameaça direta como essa à arte drag mostra que nada está garantido.
No Brasil, a situação é ainda pior: ainda somos o país que mais mata pessoas LGBTQIAPN+ no mundo. E, ainda que drag seja uma forma de arte e não uma identidade de gênero (ou seja: você pode fazer drag independente de ser homem ou mulher, cis ou trans etc) e nem mesmo uma orientação sexual (ou seja: você pode fazer drag sendo hétero, gay, lésbica, bi, pan etc), é fato que a cultura drag está intimamente ligada à comunidade LGBTQIAPN+, justamente por fugir às normas consideradas tradicionais.
Como expressão artística, o drag muitas vezes serve de veículo para que pessoas trans se vejam pela primeira vez como realmente se sentem por dentro. Logo, a presença de drags no mainstream é também uma conquista política rumo a um país mais diverso. A arte, em todas as suas expressões, tem um poder transformador muito forte – e, assim, como um bom filme ou uma música impactante, a arte drag ajuda a abrir a mente para novas possibilidades de ser, tanto para quem pratica quanto para quem assiste.
Por isso, se você conhece pouco sobre a cultura drag, se permita! Se você já é “iniciado” nesse meio, vale desbravar além do mainstream e conhecer os talentos da comunidade drag nacional (e demais artistas LGBTQIAPN+) que ainda não alcançaram a projeção merecida. Nas palavras de Rupaul: “Drags sempre serão um comentário social. Então você tem que conhecer a sua história, entender de onde a gente vem para poder seguir em frente. Não só para gays, mas para a sociedade em geral. Para todas as pessoas. É preciso conhecer sua história. Senão a gente não segue adiante”.
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