O filtro que viralizou no TikTok por simular rostos harmonizados a partir de inteligência artificial é um convite a estabelecermos limites entre o real e o inatingível.
Boca carnuda, maçãs do rosto proeminentes, mandíbula marcada, sobrancelhas arqueadas, nariz fino, dentes brancos, traços rejuvenescidos, olhos amendoados e maquiados, pele sem manchas, acnes, linhas ou poros. Você sabe de quem é esse rosto? De quem quer que use o filtro Bold Glamour, que viralizou no Tiktok por simular, a partir de inteligência artificial, faces padronizadas, sem indícios de já terem estado do lado de fora da tela. A hashtag #boldglamour já soma mais de 622 mil visualizações no aplicativo. Em segundos, nosso reflexo é digitalmente submetido a uma dezena de mudanças que só seriam possíveis com intervenções cirúrgicas e o intermédio de muitas seringas de ácido hialurônico. E olhe lá!
O Bold Glamour é a epítome do padrão de beleza atual e, claro, não é o primeiro filtro a submeter nossa aparência a esses moldes excludentes e eurocêntricos. Mas a qualidade com que ele mapeia e altera os rostos é tão impressionante quanto controversa. Ao contrário de outros filtros, o Bold Glamour “adere” perfeitamente, sem a impressão de uma máscara que se torna aparente quando nos movemos. Uma armadilha para fotos e vídeos, em teoria despretensiosos, criados para mostrar situações informais e cotidianas. Ou você conhece alguém que vá à padaria como se fosse receber um Oscar? Com essa mentira bem contada, é fácil esquecer da nossa própria face humana e da humanidade das @ que seguimos.
Quem viveu a pandemia vendo a própria imagem refletida em todas as interações sociais virtuais sabe que é impossível se despistar de si mesmo. Não à toa, a insatisfação vinda da exposição a redes sociais e videochamadas ganhou o nome de “Efeito Zoom” e chegou aos consultórios: a procura por intervenções estéticas disparou. E a busca por mudanças que nos aproximem do nosso eu digital retocado por filtros também.
Oito em cada dez cirurgiões plásticos ouvidos pela Academia Americana de Plástica Facial contaram que seus pacientes desejam melhorar a aparência em videoconferências. Por aqui, as coisas não são diferentes. Em 2020, ano em que o mundo parou por uma crise sanitária, as cirurgias plásticas faciais no Brasil foram as únicas que cresceram em comparação com 2019, de acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps).
Além disso, a harmonização facial foi a responsável pelo setor de procedimentos estéticos crescer 100% na última década no país. Em 2021, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica registrou mais de 1,4 milhão de procedimentos. E o mais preocupante: somos líderes mundiais em cirurgias plásticas em jovens. De dez anos pra cá, houve um aumento de 141% no número de procedimentos estéticos entre pessoas de 13 a 18 anos.
Antes dessa idade, inclusive, uma pesquisa encomendada pela Dove mostrou que 73% das meninas de 12 anos já usam filtros nas redes sociais e que, em média, é a partir dos 11 que elas começam a usá-los. A investigação da Dove faz parte da campanha #DeCostasParaFiltros contra os efeitos nocivos dessas ferramentas de inteligência artificial que distorcem a nossa imagem.
O levantamento revelou que 71% das meninas entre 13 e 17 anos comparam a própria imagem com a de influenciadoras, quase metade se sente mal por não corresponder ao padrão das redes sociais, 20% passam a comer menos na esperança de mudar de aparência e um quarto delas não se acha bonita o bastante para publicar fotos sem filtro. Não há estoque de colágeno que dê conta de sustentar essa autoconfiança, ainda mais em uma fase da vida em que estamos tateando o mundo e construindo quem somos.
Padrões de beleza sempre existiram. E sempre foram mais cruéis com as mulheres e com populações historicamente marginalizadas. Antes das redes sociais, de forma geral, a imposição funcionava pelo cinema, televisão, moda e o mercado editorial. Ao folhear uma revista, sabíamos que aquelas modelos estavam ali justamente para serem representantes do que a beleza da época ditava. Tentávamos lembrar que as imagens haviam sido tratadas e que havia uma equipe de cabelo, maquiagem, luz e direção por trás das fotografias. Se nos sentíssemos inadequadas, pelo menos dava para fechar a revista e esquecê-la num canto.
Agora, o megafone mental da autodepreciação não se cala tão facilmente. Todo o aparato de produção das imagens, que até então poderia acalmar a ansiedade de não nos parecermos com modelos de editoriais de moda, já não diminui mais o cortisol de ninguém. A lógica atual de exposição ao molde do que é considerado belo é muito mais invasiva. Ainda sonolentas, abrimos as redes sociais e lá está a realidade filtrada.
Nós nos deixamos seduzir por distorções que impulsionam padrões inatingíveis, filtros hiperrealistas que estimulam expectativas irreais e assim criamos defeitos e desejos onde antes havia particularidades. Estranho seria não estarmos adoentados.
Não dá para esquecer o celular num canto e seguir a vida. Ironicamente, a mesma mão que derruba a autoestima (e consequentemente a saúde mental) pode ser a que resgata. Se estamos todos insatisfeitos com os traços que nos são impostos, então a internet não precisa ser esse portal restritivo para um universo ilusório. Ela está repleta de gente, de ecos, de contrapartidas – de pessoas se expressando pela imagem, celebrando quem são, se divertindo, se admirando, compartilhando conhecimento, se descobrindo seja na neutralidade ou na autoaceitação, questionando e construindo de maneira conjunta uma realidade mais tangível e diversa.
Os filtros seguirão na palma das nossas mãos – os que aumentam mandíbulas e lábios, mas também os que nos divertem aumentando bocas e sorrisos, os que emulam como nossas versões online serão em algumas décadas, os que mostram como seríamos se fôssemos personagens de uma HQ, os que nos ajudam a contar histórias. Lúdicos, curiosos, reveladores, o que quisermos.
É difícil driblar a vaidade. Mas ser/estar bonita não precisa ser nem meio nem fim. Que a gente consiga se apropriar da nossa aparência, sem penitências. Afinal, há vida além do reflexo.
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