O debate sobre ética e direitos autorais tornou urgente a discussão sobre um novo modelo para o uso de arte generativa
A primeira “imagem de banco” (stock image) da história é uma fotografia de um grupo de pessoas em poses casuais na frente de um avião, tirada por H. Armstrong Roberts na década de 1920. Roberts teve a ideia de pedir que as pessoas da foto assinassem termos de liberação de imagem para que ele pudesse comercializá-la, um conceito revolucionário para a época.
Você não verá essa famosa fotografia neste artigo, porque custa 50 dólares publicá-la em um site, mas nós conseguimos recriá-la com precisão o suficiente para vislumbrar a original usando o Midjourney, uma ferramenta de criação de imagens através de inteligência artificial. Esta “fotografia”, que nós produzimos através de comandos de texto, foi gratuita.
A criação de imagens através de inteligência artificial (AI) tem gerado muita polêmica, especialmente na comunidade artística. Para os defensores irrestritos da tecnologia, essas ferramentas representam uma evolução paralela à invenção da fotografia ou à criação de softwares de edição de imagem. Mas talvez uma comparação mais honesta seja com o surgimento dos bancos de imagem. Porque mais do que representar uma nova ferramenta com o potencial de revolucionar a criatividade, ela promete a baratização de mão de obra artística e produção em larga escala. Uma discussão sobre o capitalismo.
Armstrong Roberts começou a vender suas fotografias entre 1920 e 1930, mas quem enxergou o potencial financeiro na venda em escala foi o alemão Otto Bettmann, que criou o Bettmann Archive, primeiro banco de imagens da história. Bettmann começou sua coleção de fotografias, infográficos e ilustrações na Alemanha e, ao chegar nos Estados Unidos, fugindo da Alemanha nazista de 1935, já havia reunido mais de 15 mil imagens, coletadas de bibliotecas e arquivos pessoais.
Desde então, os bancos de imagem se tornaram uma potência comercial e cultural, influenciando para sempre a produção de fotografias.
Grandes publicações, que dependiam de cartunistas, artistas e fotógrafos, enxergaram nos bancos de imagem uma alternativa mais barata e rápida, causando demissões generalizadas e uma redução do mercado para essas profissões. Além de inúmeros casos de plágio e de venda de imagens de terceiro sem a obtenção devida dos direitos autorais.
As ferramentas de inteligência artificial não são capazes de criar artes “do zero”. Elas desenvolvem novas imagens com base em fotografias e ilustrações coletadas da internet, na maior parte das vezes sem autorização. O uso de conteúdo de terceiros sob copyright é justificado com o propósito de pesquisa. O próprio Midjourney se define como um “laboratório de pesquisa independente”. Essa busca por alimentação de imagens – ou datamining – se mantém essencialmente através de brechas nas leis de direitos autorais. E de uma prática chamada de lavagem de dados – data laundering – usada para converter dados obtidos de forma ilegal em produtos legítimos, viáveis de serem comercializados.
Mas isso não impede que as imagens criadas ali sejam utilizadas para fins lucrativos. É a comercialização do trabalho humano sem permissão, remuneração ou mesmo conhecimento do dono. O que pode incluir trabalhos de ilustrações, pinturas ou fotos pessoais de quando você era criança, que sua mãe publicou no Facebook. Muitas vezes tão próximas do original que cruzam claramente as linhas do plágio.
Hoje ainda é possível diferenciar imagens geradas por essas ferramentas, que possuem sérias limitações, mas a velocidade dessa evolução é exponencial. Até poucos meses atrás, as AIs tinham dificuldade em criar olhos realistas, gerando imagens perturbadoras de olhos deformados e assimétricos. Hoje, os olhos bizarros têm sido um problema cada vez menor, enquanto as mãos criadas por inteligência artificial ainda parecem saídas de um pesadelo.
@whoana.keli Something doesn’t feel right… #fyp #aifilter #aimanga #2danimation #animation
É seguro dizer que, em breve, não será mais possível distinguir entre imagens criadas por humanos e imagens generativas criadas por AIs. E, hoje, já é possível desenvolver imagens usando prompts (comandos de texto) com os nomes de artistas para obter artes no seu estilo específico. Isso levanta preocupações com fraudes e até roubo de identidade no mundo das artes. Nada que não estejamos vendo também em outras áreas. O uso de deepfake – técnica de substituição de rostos ou vozes humanos através de inteligência artificial – é amplamente usado para criar e vender pornografia com as feições de pessoas famosas, por exemplo.
Outro argumento comum entre os defensores da arte generativa criada por AI é o de que todas as imagens publicadas em redes sociais são contratualmente disponibilizadas para o uso de terceiros, e por isso a regulamentação seria impossível. O que é inverídico. Fotos, artes e vídeos sob copyright são publicados todos os dias, o que não os torna domínio público. Curiosamente, este não parece ser um problema tão grande na indústria da música.
Assim como nas artes visuais, a Inteligência Artificial está presente na música. Hoje é possível criar canções completas, com letra e melodia, na voz de artistas específicos, tudo através de comandos de texto. Já imaginou como seria a música Envolver, de Anitta, cantada por Ariana Grande? Não precisa imaginar, já existe essa versão.
@culturapopoficial Envolver (Ariana Grande Version).☁️ #ariana #parati #fypシ #foryou #viral #trend #arianagrande #envolver #TikTokAwards #forvoce #nickiminaj #anitta
A diferença é que o uso comercial de música generativa é muito mais regulamentado. As ferramentas mais populares, como Dance Diffusion, Riffusion e Jukebox operam de maneira mais cautelosa, deixando claro que todos os dados coletados vêm de fontes de domínio público. Além disso, as redes sociais promovem uma varredura muito mais severa e criteriosa para o uso de músicas sob copyright do que o de imagens. Muitas vezes, derrubando a publicação de trechos de músicas até mesmo quando utilizados sob as regras do fair use.
Essa discrepância entre a regulamentação da música e das artes visuais talvez seja explicada – novamente – pelo capitalismo. A produção de música é muito mais centralizada do que a produção de arte. Os copyrights da maioria das canções mais populares são detidos por grandes empresas da indústria fonográfica; companhias que têm em seu roll de funcionários advogados caríssimos, especializados em batalhas legais por direitos autorais.
Qualquer pessoa que esteja discutindo isso a sério vai admitir que a Inteligência Artificial veio pra ficar. Seu uso está presente em diversos cenários, com infinitas possibilidades. Recentemente, a Universidade de São Paulo anunciou que está trabalhando em um modelo de cidade mais eficiente através da Inteligência Artificial, e o governador do Estado publicou imagens feitas com Inteligência Artificial de “como seria a cidade de São Paulo daqui a alguns anos”.
Mas o cenário atual não é tão otimista para artistas independentes. A perspectiva de que sua arte pode ser copiada e comercializada sem permissão desestimula a publicação de trabalhos online. Isso, somado à tendência das redes sociais de priorizar vídeos em detrimento de imagens estáticas, praticamente inviabiliza a profissionalização de muitos artistas. E é este cenário que diversos grupos ativistas, como o Montreal AI Ethics Institute, estão buscando mudar.
O uso ético, seguro e inclusivo da Inteligência Artificial é urgente e evoluções interessantes já estão acontecendo nessa direção.
Recentemente, o DeviantArt anunciou uma política de uso irrestrito das imagens publicadas no site para sua ferramenta de AI, o DreamUp. A mudança causou tantas reclamações entre os artistas que usam a plataforma que o DeviantArt recuou na decisão.
A ideia de que os defensores da Inteligência Artificial estão buscando um mundo em que o artista não seja mais necessário é catastrófica, mas pouco realista. Ferramentas de AI só são comercializáveis hoje porque se alimentam constantemente de imagens criadas por humanos, uma fonte que, diferentemente do que muitos pensam, não é inesgotável.
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