O movimento chama a atenção para os efeitos da bebida, no bolso e nas relações. E está provocando o mercado a se adaptar à sobriedade
Um brinde à sexta-feira, aos noivos, ao pé na bunda, ao ano novo, ao aniversário, ao aumento, à demissão, ao carnaval, às férias… A humanidade sempre encontrou motivos para encher o copo – e a cara. Vivemos em uma sociedade em que o álcool ocupa lugar de destaque, como sinônimo de comemoração e relaxamento, lubrificante de interações sociais e anestésico sentimental. Mas na contramão desse copo sempre cheio, há cada vez mais gente repensando o consumo sem grandes motivos – como religião, saúde ou alcoolismo – querendo ver a sobriedade sob uma nova perspectiva: quer saber? Talvez hoje eu não queira beber.
O movimento de pessoas que escolhem a abstemia ou mesmo a ingestão de doses menores de álcool foi batizado de “Sober Curious” ( que pode ser traduzido como “Curiosos da Sobriedade”) pela jornalista britânica Ruby Warrington. Em 2018, Warrington lançou um livro homônimo (sem edição em português) em que descreve, a partir de sua experiência como alguém que até então bebia socialmente, as vantagens que encontrou na vida sóbria e seus impactos no bolso, no sono, na criatividade, no foco e nas relações sociais.
“E se, como no meu caso, não houver violência, urgência ou um motivo devastador para questionar a bebida? Sem fundo do poço. Apenas as ressacas, os ocasionais apagões e a crescente suspeita de que o álcool pode estar causando um sentimento generalizado de ansiedade, tédio e crise existencial?”, a questão levantada por Ruby sintetiza os rumos do movimento. O livro é um convite para uma posição mais consciente e crítica sobre o papel do álcool em nossas vidas, e traz boas doses de provocação:
“Por que as únicas pessoas que não bebem são aquelas que não podem beber? Por que muitas vezes presumimos que uma pessoa deve ter um ‘problema’ com álcool quando para de beber?.”
Diferentemente de iniciativas de alerta e combate ao alcoolismo, como o australiano “Sober October” (outubro sóbrio) ou o “Dry January” (janeiro seco), promovido pela organização Alcohol Change, do Reino Unido, o termo “sober curious” se refere a quem não necessariamente tem problemas com dependência. Os sóbrios por curiosidade querem experimentar os efeitos da abstinência de álcool em sua saúde física e mental, de forma definitiva ou por algum tempo determinado. Mesmo com os excessos vistos em todo o mundo durante a pandemia, o estilo de vida sem álcool tem ganhado força: a hashtag “soberlife” reúne 2,3 milhões de publicações no Instagram, e no TikTok a hashtag “sobertiktok” soma mais de 1,2 bilhão de visualizações.
Naturalmente, a sobriedade, seja por opção ou por necessidade, chama a atenção do mercado. Foi-se o tempo em que quem não bebia precisava se contentar com água, suco ou refrigerante. Hoje, é possível encontrar cervejas, destilados, espumantes e diversos coquetéis sem álcool. De acordo com um levantamento feito em dez países (o Brasil incluído) pela consultoria de tendências IWSR, as vendas de bebidas sem álcool ou com baixo teor alcoólico cresceram US$ 2,2 bilhões nos últimos quatro anos. Se pensarmos apenas em cerveja, a bebida alcoólica mais consumida no país, as vendas da versão zero tiveram um aumento de 86% desde 2020, segundo a Euromonitor. No grupo ABInbev, a meta é que os produtos sem álcool ou com gradação reduzida correspondam a 20% das vendas em todo mundo até 2025.
“Trabalhar com os coquetéis sem álcool é um desafio, porque você não tem a potência alcoólica e isso exige criatividade. Então tem que encontrar formas de reproduzir sem álcool a madeira do uísque, a picância de um gim botânico, por exemplo. É um aprendizado, porque você começa a explorar ingredientes de uma forma muito interessante. Quando as pessoas estão sem álcool, a ideia é que elas tenham uma experiência completa com várias opções de sabores, e não só drinques doces ou refrescantes. Meu trabalho é instigar as pessoas a quererem beber alguns drinques sem álcool de vez em quando e ter opções gostosas diferentes para poder fazê-lo”, diz Néli Pereira, mixologista, jornalista e autora do livro “Da Botica ao Boteco”.
Trabalhando como bartender e consultora, Néli percebeu que pouco se falava na indústria sobre moderação e os impactos do álcool. Foi então que, há cinco anos, decidiu que a cada três meses passaria um mês sem beber: “Tenho uma relação que não é tóxica nem abusiva. Sou uma ativista do consumo responsável de álcool. Acho que deveríamos ter uma boa conversa com o nosso eu que bebe sempre para entender quem manda aqui. E quem manda aqui deve ser sempre a gente e não a bebida”. Ela conta que, nos intervalos, nota melhoras na qualidade do sono, no humor, na pele e na concentração.
“Além do autoconhecimento, vale pensar o que você está a fim de beber. Quando saímos de casa para comer, a gente não entra na primeira portinha e come. A gente pensa ‘hoje estou com vontade de italiano, de japonês etc’. Então, para sair do piloto automático, se pergunte o que você quer beber naquele dia. É um suco? Um vinho? Uma cerveja? Raramente nos fazemos essa pergunta. Descubra o que você quer, o que você gosta. Amplie seu paladar, assim beber se torna muito mais uma aventura sensorial que entorpecente”, ensina a mixologista.
Foi nesse mesmo caminho de autorreflexão proposto por Néli que o designer Marcelo Andreguetti parou de beber há quatro anos.
“Inicialmente, me propus a ficar três meses sóbrio, mas vi tanta coisa boa aflorar em mim que decidi continuar. Minha disposição e energia aumentaram muito. Comecei a correr e pedalar e tive mais facilidade para estabelecer essa rotina de atividade física do que quando eu bebia”, conta.
“Ao longo da minha vida, criei uma relação destrutiva com o álcool, porque usava como uma maneira de expressar uma suposta autenticidade que não era genuína. Eu só achava que era eu mesmo se estivesse alcoolizado, senão ficava criando bloqueios. Isso trazia consequências para o meu corpo, para as minhas relações. Precisei ter o entendimento disso. Mas não fico tentando converter as pessoas a pararem de beber. Acho que é um processo muito pessoal, de se olhar e compreender o próprio consumo”, diz Marcelo.
Andreguetti, que já foi DJ e sempre gostou da vida noturna, passou a frequentar festas de música eletrônica em sua fase sóbrio. “É algo que demanda fisicamente e sinto que consigo aproveitar muito mais que uma pessoa que bebe. E não só nesse tipo de circunstância” Para ele, o aspecto social foi o principal desafio, mas também um grande benefício: “Tenho a impressão de que existe um período de adaptação para saber quem você é sem o álcool como um calibrador social. Às vezes as pessoas dizem que não vão aguentar determinadas situações se não beberem. Que vão ficar chatas pra rolê. Mas se o rolê só é legal se você estiver bêbado, então você é que está indo no lugar errado, com as companhias erradas”.
Para ele, a decisão de não beber também levanta um diálogo importante sobre o conservadorismo. “Muita gente atrela o não consumo de álcool a uma visão conservadora, religiosa ou puritana. Mas eu não sou uma pessoa conservadora, muito pelo contrário, e minha aparência também não dá nenhum indício disso. Então rola um choque quando digo que não bebo. Essa é uma conversa que eu tento ter, de não moralizar, de não tentar convencer ninguém e mostrar que essa é uma decisão individual e não dogmática”, afirma.
Não beber (ou não exagerar no álcool) nunca foi tão comum entre os jovens. Seja por uma maior consciência dos impactos do álcool, menor interesse pela vida noturna, ou receio de que seus vexames alcóolicos sejam registrados e caiam nas redes sociais, a geração Z (nascida entre a metade dos anos 90 até o início da década de 2010) é a mais abstêmia da história recente.
Um levantamento realizado no Reino Unido em 2019 mostrou que enquanto apenas 15% de pessoas na faixa etária de 55 a 74 anos não bebem, a proporção entre jovens de 16 a 25 anos é de 26%. Números semelhantes são vistos nos Estados Unidos: a taxa de jovens universitários abstêmios passou de 20% para 28% em dez anos.
Apesar de a tendência ter começado há mais tempo em países como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, ela também está sendo vista no Brasil. Uma pesquisa do Ministério da Saúde feita em 2021 chegou à conclusão que o percentual de pessoas entre 18 e 24 anos que consumiram cinco doses ou mais(quatro, no caso das mulheres) de bebida em uma única ocasião nos últimos 30 dias é o menor em sete anos.
Não beber, beber pouco ou intercalar períodos de sobriedade e consumo são comportamentos cada vez mais comuns, e provam de que é o autoconhecimento quem dita se o copo vai estar meio cheio ou meio vazio. E você, ainda estranha quando alguém escolhe não beber no rolê?
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Confira a entrevista completa com Néli Pereira e Marcelo Andreguetti em:
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