A medicalização das mulheres tem raízes profundas e um objetivo claro: reforçar a inferioridade feminina
Nas últimas semanas, os shows da cantora Taylor Swift no Rio de Janeiro foram palco de uma série de polêmicas, a começar pela morte da jovem Ana Clara Benevides por hemorragia pulmonar associada ao calor, segundo laudo preliminar do IML. Enquanto o caso é investigado, surgiram ainda outras denúncias em relação ao atendimento no posto médico do local – em suas redes sociais, a influenciadora Bel Rodrigues relatou que a produção do evento oferecia o tranquilizante Clonazepam, também conhecido como Rivotril, para as fãs que passavam mal. “Mas, quando pedi para voltar ao postinho (…), a mulher simplesmente disse que tava ficando meio lotado e que ia me dar um clonazepam sublingual para eu me acalmar. Mas eu não precisava de calma, precisava de ajuda!”, comentou a influenciadora.
Um artigo publicado no site do Conselho Federal de Farmácia explica que “o medicamento possui tarja preta, o que significa que deve ser vendido estritamente sob prescrição médica. De acordo com a Coordenação Técnica e Científica do CFF (CTEC), o clonazepam está incluído na classe dos benzodiazepínicos, desenvolvidos pela indústria farmacêutica para o tratamento, a curto prazo, de pacientes com ansiedade”. Porém, a nota técnica elaborada pela CTEC esclarece que o uso do medicamento não é mais a primeira linha de tratamento e que o uso destes sem prescrição é considerado abusivo. As denúncias levantaram uma discussão acalorada nas redes sociais: por que seria aceitável dar calmantes indiscriminadamente para mulheres? E mais: essa situação aconteceria em eventos cujo público é predominantemente masculino?
Essa tendência de medicar mulheres para “acalmá-las” não é nova – na verdade, ela tem raízes extremamente profundas, que remetem aos primeiros estudos da biologia feminina. Segundo artigo publicado pela Doutora Melissa de Oliveira Pereira, Mestre e Doutora em Saúde Pública, nos primeiros escritos psiquiátricos sobre o tema “as diferenças entre homens e mulheres se expressariam organicamente e apontariam para a inferioridade feminina e “predisposição para o enlouquecimento”. A noção de que “na medida em que são mulheres, são também doentes e são doentes porque são mulheres” (ROHDEN, 2001, p. 30) ocupou os tratados psiquiátricos dos séculos XVIII e XIX”.
Nesse sentido, o simples fato de nascer mulher significava uma sentença de fraqueza – numa tentativa de perpetuar o sexo feminino como “sexo frágil” em meio ao crescente movimento feminista da época. A figura da “femme fragile”, representada principalmente pela personagem Ofélia de Shakespeare, se tornou no ideal feminino do século XIX por sua essência: uma mentalidade frágil e propensa à insanidade por amor, que fatalmente lhe levaria à morte. O culto à imagem de Ofélia era tão intenso que um dos cosméticos mais usados na época era o chamado “pó de Ofélia”, que deixava a pele das mulheres mais pálida e aparentemente adoecida.
Segundo o livro “Inferior é o car*lho”, escrito pela jornalista científica Angela Saini, “com a descoberta dos hormônios, os cientistas ganharam uma nova forma de explicar os estereótipos. De acordo com Anne Fausto Sterling, professora de biologia e estudos de gênero da Universidade Brown, o eminente ginecologista britânico William Blair-Bell, por exemplo, acreditava que a psicologia da mulher dependia do ‘estado de suas secreções internas’ para mantê-la em ‘sua esfera normal de ação’. À época, isso significava ser esposa e mãe. Se ela pisasse fora desses limites sociais, cientistas como ele sugeriam que devia ser porque seus níveis hormonais estavam desregulados”.
Em coluna para o Estadão, a jornalista Luciana Garbin cita o livro “Unwell Women”, da historiadora britânica Elinor Cleghorn, e como os estudos da biologia feminina eram dedicados principalmente à sua capacidade (e dever) de reproduzir: “Não por acaso, ‘especialistas’ do passado costumavam relacionar vários problemas no corpo feminino ao útero – a palavra histeria, por exemplo, largamente usada em diagnósticos de mulheres ao longo dos tempos, vem de histera (“útero” em grego). No século XIX, dores pélvicas e abdominais femininas, assim como desarranjos menstruais, eram tratadas com cirurgias agressivas, acusações de histeria e internações forçadas’”, relata.
Se os exemplos citados até aqui parecem distantes da nossa realidade, basta analisarmos o Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo, que fechou suas portas em 2021. Em entrevista para O GLOBO, a Doutora em História Eliza Teixeira de Toledo detalha o tratamento desigual que ocorria na instituição: “Os próprios médicos diziam que algumas pacientes eram lúcidas. O problema era mais uma patologia moral, de ir contra os costumes e a ideia do que era uma ‘mulher saudável’”. Toledo ainda afirma que muitas das pacientes mulheres foram submetidas à lobotomia: “O objetivo da própria terapêutica era acalmá-las, acalmar comportamentos de agitação. Queria-se a passividade delas. Pressupunha-se uma passividade maior para uma mulher normal. Havia tolerância menor com a agitação porque não era um comportamento feminino.”
Ainda que um procedimento tão agressivo como a lobotomia tenha sido abolido, ele deu lugar a formas aparentemente inofensivas de “domesticação” da mulher, como a medicalização. Segundo o artigo da Dr. Melissa (citado acima), “A apresentação de fármacos como soluções de tratamento para o orgânico feminino louco vem ganhando dimensões notáveis. (…) Prado, Francisco e Barros (2017) apontaram que o uso dos psicofármacos foi 48% maior em mulheres”. Há quem questione dados como esse com o argumento de que mulheres cuidam mais da própria saúde do que os homens – mas não deixa de ser um dado condizente com a carga mental e financeira das mulheres brasileiras, que lideram a maioria dos lares do país – 50,9%, segundo levantamento do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) feito para o Valor Econômico.
Segundo o artigo da Dr. Melissa (citado acima), muitas vezes as mulheres atendidas em postos de saúde têm problemas sérios relacionados a emprego, moradia e cuidado familiar, e recebem a medicação como uma solução paliativa e superficial para males de natureza social e econômica. E se mulheres brancas e cisgêneras já sofrem de todos esses preconceitos e abusos médicos, basta imaginar quão mais grave fica esse cenário quando incluímos a experiência de mulheres pretas e transsexuais. Estas muitas vezes sofrem do problema inverso: mesmo quando precisam de fato de uma medicação específica, são privadas desse cuidado – seja por descaso, preconceito ou até ideias incorretas sobre sua resistência à dor.
Diante deste histórico pavoroso, o que pode ser feito para que a saúde da mulher seja compreendida e tratada de maneira humanizada? Isso porque este artigo tem um enfoque específico em psicofármacos, porque se entrássemos em questões de violência obstétrica e direitos reprodutivos, daria para escrever um livro. O que fica claro é que, por mais absurdo que seja, nossa sociedade normalizou o uso de medicamentos pesados para domesticar mulheres, sejam elas fãs apaixonadas de artistas pop ou mulheres consideradas “desviadas” do caminho moralmente aceito.
No livro de Saini (citado acima), ela cita a psicóloga Cordelia Fine, que cunhou o termo “neurossexismo” para descrever estudos científicos que recorrem a estereótipos de gênero, mesmo quando tais estereótipos não foram comprovados. Saini afirma ainda que “décadas de testes rigorosos com garotas e garotos confirmam que existem poucas diferenças psicológicas entre os sexos, e que as diferenças encontradas são moldadas principalmente pela cultura, não pela biologia”. A boa notícia é que, cada vez mais, mulheres estão conquistando espaço nas áreas biológicas, seja na medicina ou mesmo na pesquisa científica, e estão determinadas a mudar esse cenário.
Falando nelas, seus livros e artigos citados aqui são um excelente ponto de partida para quem quer entender mais do assunto. Enquanto isso, vale refletir: se fizermos um paralelo entre a reação de fãs fervorosas da Taylor Swift e do conflito entre torcedores do jogo entre Brasil e Argentina, qual dos dois eventos é um exemplo maior de descontrole? Há quem considere aceitável “acalmar” um desses grupos com medicamentos tarja preta? A indignação geral em relação a essa hipótese, levantada nas redes sociais, indicam um bom sinal de que isso não será mais aceitável daqui para frente.
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