IMPACTO SOCIAL

O ChatGPT vai escrever sua nova série favorita?

Por que os roteiristas de Hollywood estão em greve e o que a inteligência artificial tem a ver com isso.

 

A sua série favorita está em xeque. Mais do que ser descontinuada, ter a estreia de uma nova temporada atrasada, ela pode ter menos episódios e, pior, a qualidade de toda a narrativa pode ser comprometida. Mas, calma, antes de sair cancelando seus streamings vale entender que os motivos que vão determinar se, em um futuro próximo, você vai estar frustrado ou fascinado no sofá da sua casa partem de uma mesma questão: as condições de trabalho dos roteiristas.

 

No dia 2 de maio, o Sindicato dos Roteiristas dos Estados Unidos (WGA) anunciou uma greve, que impacta grande parte da produção de Hollywood e que foi aprovada por 98% de seus 11,5 mil membros. “A decisão foi tomada após seis semanas de negociações com Netflix, Amazon, Apple, Disney, Warner, NBC Universal, Paramount e Sony, sob o guarda-chuva da Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP). Apesar do compromisso do nosso comitê de negociações em fechar um acordo justo, a resposta dos estúdios foi insuficiente diante da crise existencial que os roteiristas estão sofrendo”, divulgou a instituição em suas redes sociais.

 

Essa é a primeira greve da categoria em 16 anos – a última aconteceu entre 2007 e 2008, durou 100 dias e teve o apoio de atores e diretores. A mobilização impactou o destino de séries como Breaking Bad, Grey’s Anatomy, The Big Bang Theory e Lost (a greve foi uma das razões que culminaram no final questionável de um dos shows de maior sucesso dos anos 2000); bem como o cancelamento do Globo de Ouro de 2008 e gerou um prejuízo estimado em US$ 2,1 bilhões.

 

Agora, com a revolução provocada na indústria cinematográfica nos últimos anos pela popularização das plataformas de streaming, as condições de trabalho e remuneração dos roteiristas foram sendo cada vez mais sucateadas. Eles pedem por melhores planos de carreira, reajustes salariais, querem receber mais pelos lucros gerados por produções de streaming, e reivindicam por mudanças no cálculo dos “valores residuais”, termo que se refere aos royalties pelo uso das obras depois de seu lançamento. 

 

Para a classe, o custo dessas melhorias é modesto se comparado aos lucros da indústria, que continuam altos. De acordo com o Sindicato, entre 2013 e 2014, 33% dos profissionais recebiam o piso mínimo da categoria. Atualmente, metade dos roteiristas ganha esse valor. Para completar, a inflação reduziu o poder de compra, principalmente em cidades caras como Nova York e Los Angeles, onde se concentra a indústria do entretenimento – como o salário médio dos roteiristas está sem reajuste há cinco anos, houve uma desvalorização de 14% desde 2018.

 

“As empresas usaram a transição para o streaming para reduzir o pagamento dos roteiristas e separar a escrita da produção, piorando as condições de trabalho dos roteiristas de séries em todos os níveis. Nas equipes de TV, mais escritores estão trabalhando pelo mínimo, independentemente da experiência, geralmente por menos semanas ou em mini salas, enquanto os showrunners ficam sem uma equipe de roteiristas para completar a temporada. E embora os orçamentos das séries tenham disparado na última década, o salário médio dos escritores e produtores caiu”, divulgou a WGA. A paralisação já conta com o apoio dos jurados do festival de Cannes e diversas celebridades, como Elizabeth Olsen, Amanda Seyfried, Drew Barrymore, Jimmy Fallon e até Barack Obama.

 

Produções impactadas

 

As séries Big Mouth, Grey’s Anatomy, The Last of Us, Euphoria, YellowjacketS, Stranger Things, Blade Runner 2099, Cobra Kai, Ruptura e O Cavaleiro dos Sete Reinos já tiveram seus calendários alterados. O mesmo acontece com os filmes da Marvel Blade e Thunderbolts. Em respeito à greve (e sem escritores para tocar os shows), os programas de televisão ao vivo como The Late Show with Stephen Colbert, Jimmy Kimmel Live, The Tonight Show Starring Jimmy Fallon, Last Week Tonight with John Oliver, Late Night with Seth Meyers estão exibindo reprises.

 

Estes são apenas alguns exemplos da repercussão de um mês de greve. De acordo com a Aliança de Produtores de Filmes e TV, entidade que representa os estúdios, a paralisação pode impactar 600 produções para a televisão, streaming e cinema – o que também representa uma possível perda de 20 mil postos de trabalho.

 

Para Ross Douthat, colunista do New York Times e ex-editor da revista The Atlantic, esse é um momento para se voltar à qualidade das produções. “Pessoalmente, eu gostaria de ver a greve alavancar um sistema diferente de Hollywood. Mas eu me contentaria com um retorno ao cenário do entretenimento que existia há cerca de dez anos, antes da decolagem do streaming – quando as desvantagens da era das franquias de efeitos especiais no cinema foram compensadas em parte pelo surgimento de uma televisão mais rica, profunda e ambiciosa.”

 

ChatGPT, escreva um roteiro sobre…

 

Você acha que a inteligência artificial pode ser tão engraçada quanto Jerry Seinfeld e Larry David, tão fantástica quanto a mente de George R. R. Martin, tão espirituosa quanto Jimmy Fallon, captar tão bem o espírito do tempo e a complexidade das relações quanto Lena Dunham e Michaela Coel? Se você já escreveu pelo menos uma linha de ficção na vida, é provável que a sua resposta seja vacilante.

 

Acontece que para os figurões de Hollywood, a resposta é “por que não?”. Para além do Chat GPT, em uma busca rápida, é possível perceber que a oferta de softwares de escrita que, em teoria, poderiam escrever roteiros são numerosos. Porém, uma das exigências da greve que simboliza o tamanho da “crise existencial” que os roteiristas estão vivendo, como a própria WGA define, é que nenhum serviço de inteligência artificial escreva ou reescreva material literário. A AMPTP, por sua vez, rejeitou o pedido com a contrapartida de oferecer encontros anuais para discutir os avanços desse tipo de tecnologia.

 

Em coletiva de imprensa durante o festival de Cannes, o ator Sean Penn, que já havia declarado apoio à greve, foi veemente contra o uso de IA na construção de roteiros. Chamando a prática de “obscenidade humana”: “Há muitos novos conceitos que estão sendo lançados sobre, você sabe, como o uso de IA. E isso me parece uma espécie de obscenidade humana, que exista qualquer resistência a isso por parte dos produtores.”

 

Será que a inteligência artificial vai tomar o posto dos contadores de histórias?

 

As discussões sobre o uso dessa ferramenta na literatura, prima-irmã e tantas vezes matéria-prima para a indústria cinematográfica, talvez estejam mais adiantadas pelo fato de a literatura, diferentemente de séries e filmes, ter seu valor muito mais concentrado no texto em si. Mas tomemos o atalho da relação com essa outra mídia para pensar nas lições de trocar cérebros humanos por automatizados na construção de narrativas como um todo.

 

Em menos de um ano, o autor de ficção científica Tim Boucher usou geradores de inteligência artificial para escrever 97 livros, mais especificamente mini romances. Em um artigo que escreveu (não se sabe se com auxílio de IA ou não) para Newsweek, ele dá detalhes sobre a “criação” dessas obras. “Consegui dar vida a histórias e universos narrativos que vinham se formando em minha mente há anos. Até usei a IA para me ajudar a codificar miniaplicativos que simplificarão e acelerarão ainda mais o processo criativo no futuro. Usando ferramentas, é preciso aprender e se adaptar aos limites das tecnologias existentes atualmente. Aprendi a abraçar isso, porém, e vê-las como ‘recursos, não bugs’, e até mesmo algo que aponta para novas oportunidades de contar histórias”. 

 

Apesar de ter conseguido dar vida a livros em menos de três horas, Boucher não acha que a tecnologia vai substituir trabalhos criativos. “Vejo a IA como uma ferramenta poderosa para aprimorar e acelerar nossas habilidades e capacidades e para nos tornar melhores em tudo o que fazemos. Estou convicto que a interseção de IA e storytelling possui um enorme potencial e estou ansioso para ver aonde essa jornada nos levará a seguir. Nossa imaginação é o único limite”, afirma.

 

Para o portal de tecnologia The Verge, mesmo que ficções criadas por bots estejam inundando as revistas literárias, esse tipo de obra não tem enganado ninguém. O fato desse tipo de narrativa sempre depender de um humano é tema de um artigo da revista The Atlantic que faz uma analogia entre a interação de mentes e softwares na escrita de obras literárias como a música, mais especificamente o hip-hop. 

 

“Eu sei como é uma boa escrita. Eu sei quem o Sudowrite [ferramenta de IA] deve imitar (e posso explicar o porquê), e sei o que são uma frase polida e um parágrafo realmente acabado. Você precisa de mais compreensão do estilo literário, não menos. O análogo mais próximo desse processo é o hip-hop. Para fazer hip-hop, você não precisa saber tocar bateria, mas precisa ser capaz de fazer referência a toda a história das batidas e ganchos. Todo produtor se torna um arquivo; quanto maior o seu conhecimento e mais coerente a sua compreensão, melhor o trabalho resultante. O criador da arte literária significativa da IA será, na verdade, um curador literário”, diz o romancista canadense Stephen Marche, autor de “The Next Civil War” (A próxima guerra civil, ainda sem título em português).

 

Mas para ouvir a “música” que essas ferramentas podem gerar, antes de tudo é preciso saber se o público estará disposto a apreciá-las. O escritor e crítico literário Julián Fuks, em sua coluna no UOL, chama o fenômeno de “a nova morte do autor”, e afirma não duvidar do poder da tecnologia em gerar narrativas consideráveis. É a recepção humana frente a esse conteúdo que intriga o autor do premiado romance “A resistência”. “Desconfio que não queiramos ler livros escritos sem suor e intenção, redigidos por seres insensíveis aos atritos da arte e suas desrazões, por seres indiferentes à história humana, seu prazer, sua dor. (..)Não sei vocês, mas a mim interessa muito mais ler a história do sujeito que fracassa, a história de seu medo e de seu assombro, essa mesma história que tem composto a literatura há séculos imemoriais.”

 

Talvez não ouviremos que o Oscar vai para… ChatGPT. Mas podemos vê-lo dividindo o prêmio com algum humano.

 

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Victor Marcello

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