Isso representa o Brasil mais do que futebol e samba: as origens e os porquês de o banho diário ser um patrimônio cultural do país
Os brasileiros se destacam como um dos povos mais asseados do mundo. Seja para aplacar o calor, relaxar, ou refrescar as ideias, o hábito de tomar banho diariamente, uma límpida herança dos povos originários, é patrimônio cultural. De tema de um dos desenhos animados mais icônicos já produzidos no país (quem não lembra da música do ratinho do Castelo Rá-Tim-Bum?), instrução obrigatória que damos às visitas sobre a regulagem das torneiras, a ditado popular – “Sou pobre, mas sou limpinho” – a higiene pessoal aqui é coisa séria.
Encaramos o chuveiro até 12 vezes por semana. Quem já pegou transporte público no exterior, sentiu na pele (mais especificamente na mucosa nasal) a vantagem que temos sobre outros lugares nesse quesito. Dados da consultoria Euromonitor indicam que ocupamos o primeiro lugar na frequência de banho, seguidos dos colombianos e australianos com uma média de dez e oito duchas semanais, respectivamente. Norte-americanos, espanhóis e franceses ficam na média de sete banhos. No final da lista estão alemães, japoneses, turcos e ingleses. Na lanterna absoluta, vêm os chineses, com um banho a cada dois dias.
Mais que gosto pela sensação de banho tomado, um levantamento da Procter & Gamble mostra que os brasileiros também se destacam no uso de desodorante e na higiene bucal. Aqui se passa desodorante duas vezes e se escova os dentes três vezes ao dia. Mas a aversão ao “cc”, que nada mais é que uma sigla para “cheiro de corpo”, foi algo construído.
Banho que vem de berço
Os primeiros registros que se tem notícia de práticas semelhantes ao banho remontam à Babilônia, na Mesopotâmia, há mais de 2000 a.C. Egípcios, gregos e romanos também eram adeptos ao banho. Egípcios faziam rituais de adoração aos deuses em rios. Com suas avançadas obras de distribuição de água, os gregos popularizaram as casas de banho e deixaram o gosto por esse tipo de estabelecimento como herança para os romanos, que os aprimoraram.
Como o historiador Georges Vigarello descreve em seu livro “O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal”, a formação do banho como um hábito contemporâneo não foi um processo linear. Mesmo na Antiguidade, para além do asseio pessoal, em algumas circunstâncias encarar a água tinha caráter ritualístico, festivo, de purificação e também de socialização. Não à toa, banquetes luxuosos na Grécia eram precedidos por banhos para os convidados e, no Império Romano, as termas públicas eram lugares onde cidadãos de diversas classes sociais se encontravam.
Com o fortalecimento do catolicismo na Europa, o aumento populacional e o alastramento de doenças como a peste negra, a higiene foi por água abaixo. Para a Igreja Católica, com seus ideais de castidade, banhar-se nu, ainda mais em público, ganhou contornos de lascívia e pecado – o que não era completamente injustificado, porque o banho também era usado como uma preliminar para o sexo. Tomar banho sozinho também era a gota d’água e passou a ser visto como ameaça à fé cristã, um convite para pensamentos impuros. Pregava-se então que a sujeira era um sinal de sacrifício e obediência divina.
Desenvolveu-se inclusive a ideia de que diversas doenças seriam transmissíveis pelo ar e poderiam penetrar pela pele. E se os banhos abrem os poros, logo tornaria as pessoas mais suscetíveis ao adoecimento. Durante a Idade Média, essa concepção evoluiu para Teoria dos Miasmas, uma tataravó da noção atual da contaminação por microorganismos, em que se acreditava que os odores da decomposição de matéria orgânica “envenenariam” o ar e contaminariam as pessoas. Como evitar doenças então? Criar uma barreira de proteção sobre a pele, a famosa crosta de sujeira, e trocar de roupa com frequência, já que a imundície ficaria na peça que fica em contato com o corpo.
Por séculos, passar um paninho ocasional nas partes íntimas, lavar as mãos, o rosto, e tomar um banho ao ano foi o ideal de higiene. E foi com essa cartilha de asseio que os portugueses chegaram ao Brasil e se depararam com populações indígenas que tomavam entre cinco e oito banhos por dia, como conta Eduardo Bueno no livro “Passando a limpo: história da higiene pessoal no Brasil”. Mas a mudança não aconteceu de uma hora para outra. Nem dois séculos de convívio com povos originários, nem o clima tropical foram capazes de mudar a afeição dos europeus que desembarcavam aqui pelo próprio futum. Bueno ainda afirma que não há registros de que Dom João VI tenha tomado um único banho de corpo em toda a sua vida – seu herdeiro Dom Pedro I, em compensação, era mais asseado e até nadava nu no mar.
“‘Banhos de gato’, esfregações com vinagre, lavar as mãos antes das refeições, roupas brancas limpas e perfumadas e cômodos defumados asseguravam a autoestima e a sensação de ‘estar limpo’. Ia caindo em desuso considerar-se o cheiro corporal como ‘algo natural’. O chuveiro se tornava, pouco a pouco e em toda a parte, uma instituição”, descreve Mary Del Priore em “Histórias da gente brasileira”.
Ela relaciona o surgimento do saneamento nas cidades, sobretudo a água encanada, e o início da comercialização de produtos de higiene pessoal no século XIX com a formação de rotinas um pouco mais próximas das que vemos hoje no país. “A partir da década de 1880, a higiene passou a ser entendida como um instrumento de conforto e progresso, assim como uma ciência capaz de combater as impurezas invisíveis a olho nu. Micróbios? Agora se sabia: existiam aos milhões. Eram minúsculos, mas perigosíssimos. Melhor se precaver tomando as Pílulas Vegetaes da Graça de Deus, como sugeria certa propaganda. É sempre bom lembrar que foi um longo caminho esse que substituiu hábitos tradicionais por novos. E que a associação entre pobreza, sujeira e doença foi se consolidando à medida que a indústria do banho e da higiene mudava a sensibilidade em relação ao corpo”, descreve.
É justamente por essa construção de pobreza, sujeira e falta de acessos (e aí entram muitos, como saneamento, água encanada, itens de higiene pessoal etc) que a ideia de estar socialmente “apresentável” no Brasil passe pelo banheiro – e por um armário repleto de cosméticos que intensifiquem a chuveirada. Talvez uma grande parte da nossa vontade de tomar banho todos os dias resida no sentimento de que o asseio pode nos distanciar dessa carência e, se não abrir, pelo menos não fechar portas socialmente.
O sociólogo Tulio Custódio explica que devido a uma série de fatores, especialmente a escravização, somos um país onde o preconceito se estabelece a partir de marca, ou seja, daquilo que se vê. “As pessoas que têm traços que se aproximam do negro tendem a receber um tratamento mais próximo da noção racista do que é o negro. Enquanto quem tem a pele mais clara recebe um tratamento mais próximo do que é destinado aos brancos. E isso mimetiza-se também no universo social.”
“No Brasil, raça informa a classe. A ideia da aproximação de uma pessoa com a situação social onde ela está geralmente vai remeter ao tratamento que ela vai receber. Nesse contexto, a sujeira está muito associada à condição de pobreza, de marginalização social. Portanto, aparentar sujeira ou de alguma forma demarcar essa sujeira mostra que você está em um status social abaixo. Quando colocamos a questão racial nessa equação, isso ganha contornos mais demarcados. Então, mesmo que uma pessoa negra esteja muito arrumada e bem vestida, e geralmente ela vai tentar estar, ainda estará sujeita ao racismo. O asseio entra no lugar de representação social, aquilo que eu aparento ser”, diz ele.
Tomar banho todo dia, que agonia
Em 2021, os atores Ashton Kutcher e Mila Kunis incendiaram a internet, principalmente a brasileira, ao contarem durante o podcast Armchair Expert que não tomam banho diariamente e que esperam os filhos cheirarem mal para mandá-los ao chuveiro. Não demorou para os também atores Kristen Bell e Dax Shepard revelarem que também são adeptos da prática. Jake Gyllenhaal, Brad Pitt, Robert Pattinson e Charlize Theron são outros que já se pronunciaram sobre hábitos de higiene pouco ortodoxos – em entrevista a David Letterman em 2008, a estrela do último Mad Max disse que ela ficaria “bem” sem tomar banho por uma semana. Durante sua participação no BBB 21, a influencer Viih Tube virou pauta no Fantástico por ter tomado banho em apenas metade dos dias em que ficou no reality.
Mas por que essas celebridades saem em defesa da falta de higiene? O fenômeno é complexo, mas a resposta é mais simples que abrir a torneira: eles podem. “Dentro de um universo de acessos, de privilégios, existem formas de distinção, maneiras de demarcar uma posição entre quem tem acesso, quem não tem e quem tem mais. Quando essas pessoas que fazem parte da elite financeira falam que não precisam tomar banho todo dia, elas estão demarcando uma posição de status, de distinção em relação às suas escolhas que passam pela individualidade. Na posição delas, a higiene deixa de ser uma questão de necessidade e passa a ser uma escolha”, afirma Custódio.
Pouco importa quais são os hábitos de higiene dessa minúscula parcela da humanidade, eles não perderão acessos e oportunidades por isso. Já para o restante dos mortais, sem banho as coisas podem começar a feder.
Quer saber mais sobre aparência, higiene e desigualdade social? Confira a entrevista completa com Tulio Custódio.
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